Talvez

 Abriu os olhos sonolentos e já um pouco feridos pela luz do dia, que insistente, por meio de brechas na cortina branca, adentrava o quarto. Em meio a incerteza do dia que mal acabara de começar, ainda que relutante, criou coragem, depois de observar o amarelo do teto, e pôs-se de pé, tentando afastar o pensamento de que amarelo, em algum lugar havia lido, era a cor do desespero.
 Poderia ser coisa de recém-adulta, crise de quem está deixando a adolescência, mas sua cabeça dava cada vez mais voltas diante de todas as dúvidas sem resposta e reflexões infinitas, que muitas vezes não chegavam a lugar nenhum.  Caminhou um pouco tonta, com certa dificuldade pelo corredor mal-iluminado, que dava a impressão de um amarelo escuro, quase fantasmagórico em sua mente perturbada. Por pouco, atrapalhada pelo tapete velho de mal gosto grudado ao chão, não caiu em cima da estante abarrotada de livros. Chegou a cozinha imaginando o que comer, porém sem fome alguma, e assim sendo, sem a necessidade do preparo de nada em particular, abriu-se espaço para a cena de outrora e começou a divagar novamente. Decidiu pegar um café, enquanto pensava, com o gosto amargo dele fervendo passeando na boca, na sua época de criança, na qual descobrir porque a água dos rios é chamada doce, soava como a descoberta mais interessante dos livros de ciências. Lembrou também, da situação dos últimos dias, nos quais ela sente falta desse saber dado, entregue pronto, logo após uma pergunta simples. A nostalgia da presença de um professor para respostas mais complexas sobre a existência do ser, que não fosse dada por si mesma, lhe sufocou a garganta. Saudade daquilo que a gente nunca viveu, é a mais violenta de todas.
  Sentou-se na cadeira fria de frente para a janela, apoiou os braços fágeis no vidro da mesa, e depois de momentos ininterruptos observando algumas folhas derrubadas pelo vento caindo no chão, seguiu uma linha até chegar na certeza única, no conhecimento seguro, que todos sempre dizem: algum dia, todos morreremos. Os autores que admira, outros tantos que transformaram a realidade através de grandes feitos, ou arte, ou luta, ou luta através da arte e que deixaram esse mundo, da mesma maneira não são eternos aqui. A maioria, provavelmente já se foi, sem garantias do que acontece depois do que temos nesse mundo, apesar de todo seu estudo, toda sua inteligência, não puderam provar o que vem depois daqui. Alguns, podem mesmo ter desistido de sua vida no meio do caminho, ou acharam que o caminho era a desistência. Tantas mentes brilhantes, irriquietas e misteriosas. Ela só pensava em ter uma amostra do que sentiram no momento da criação, equanto entrava em contato com suas obras.
  Sabia antes de tudo e experimentara vários caminhos em liberdade, fez o que quis e algumas vezes o que não quis para agradar, para acredidar em qualquer teoria ou religião, para se ajustar ao que observava. Acorda e sobrevive, um dia de cada vez. Uma infinidade de possiblidades para qualquer lugar, toda proposta em suas mãos, com o poder de decisão. Porém, nada disso era conforto para ela, que contemplava a manhã alaranjada contrastando com o céu azul, se encostadando em uma janela qualquer, sua janela, sem expectativas, com questões sem respostas. Você sempre quer o que acha que quer? E em algum livro apertado, e na bagunça de sua pisqué havia um trecho, que dizia haver para cada possível pergunta concebida nesse mundo,  uma resposta. E ela sentia, como se todas essas perguntas estivessem concentradas em si, de uma só vez, voando rápido em sua cabeça, seu ritmo obscurecendo seu saber apreendido. Continuava sendo aquela leitora ávida, mas as letras, uma vez absorvidas, não faziam mais sentido, só acrescentavam mais perguntas em sua já lotada caixa de interrogações.
  Olhou para o quadro de um peixe na parede que desenhara anos atrás. Tão obstinado, certo de seus movimentos, correto em seu olhar, refletindo somente como ela foi um dia. Reencontrou-se há pouco tempo, com o desenho que havia abandonado, o lápis negro e a folha branca abrigando suas mãos trêmulas e criativas, desesperadas para descarregar algum erro, alguma pista, alguma angústia que não sabia reprimir, não sabia domar. E até que isso passe, admitia ficar refém desse prazer reconfortante e acolhedor que a arte lhe dava, mas que se obrigara a esquecer por meio da loucura. Foi, a passos largos, de volta ao quarto, chegou ao criado mudo em um instante e pegou seu material sagrado. Rabiscou, traçou, e criou seu mundo ideal, adormeceu, como toda mente transtornada fez um dia, em meio aos papéis.