Mar

  Eu tenho vindo para cá durante seis dias e sete noites, completando-se agora. Caminho longa e calmamente por entre as vias cinzas e farfalhantes ao som do ronco dos motores dos carros. Na maioria das vezes, minha cabeça dói, outras é meu coração. Em alguns raros momentos, meu cérebro está convulsionando como agora. Meu corpo obedece a ordem de manter um passo por vez, com cautela, e acata a ordem do rosto lívido, ilegível, sem nenhuma expressão. Ninguém, por mais perito que seja em identificar perturbações em almas alheias diria que há algo de errado com o meu olhar. Sigo em frente como se houvesse algum ponto definido no fim da reta, sabendo exatamente para onde ir. E quando menos espero chego ao meu aterro de ideias. Antigamente havia ali árvores com seus troncos grossos, bancos coloridos alegremente e cinzas por dentro (que me faziam reconhecer-me e familiarizar-me com o local, já que me recordavam a estratégia que usava na minha face  com minha maquiagem), areia suja, algumas cadeiras plásticas de comerciantes, empilhadas á um canto, barcos furados, cheiro de peixe e o mar. Para mim, em resumo, quando fechava os olhos e ia distinguindo cada som e separando-os, selecionando-os e apagando-os, até sobrar somente o som das ondas e meus pensamentos, era só eu e o mar, o mar e eu, o mar e meus pensamentos, o mar e ela. Ela, a louca que queria jogar tudo para o ar, a maluca pretensiosa exigindo-se aprender mais do que podia, a insana fazendo mil coisas ao mesmo tempo, a chorona, caindo aos pedaços em cada tropeço pela vida. E depois a santa, renegando qualquer mau pesamento sobre a sua história, sobre sua amiga, sobre sua família, querendo agradar á todos, fugindo de sua juventude, jogando fora sua vida querendo ser a perfeita, fora de cogitação. Era ali, naquele momento que iam embora todas essas partículas desastrosas, todos aqueles anjos e demônios em seu coração, tudo que a adoecia, aquilo que a deixava sem dormir, sem agir, sem pensar direito. Por mais irônico que seja, depois de fato vieram os entulhos: algo que construiram e colocaram abaixo em algum lugar que ela nem desconfiava, fora parar em sua praia, seu pedacinho de cidade-natal. Não houve harmonia maior com o ambiente. O entulho de pedra representando seu entulho mental. Naquele pedacinho de lugar, não havia o outro, havia só o resto das pessoas: um ou outro que vinha ali pegar um pouco do sol, um pouco do sal. Mas eu os ignorava, ás vezes os observava, tentava aprender no sorriso de uma criança uma razão para sorrir também, ás vezes, quase sempre era inútil, mas mais tarde, em casa, sorria abobada com a minha facildade de viver em mundos alternativos como o da minha pequena Guia de Pacobaíba, minha Pacobaíba particular como gosto de chamar. Ainda guardo o tom bronzeado na pele de gente que nasceu em praia, parece que o cobre entranha na pele e não sai mais, não depois de 17 anos. Não depois de tantas histórias, tanta poluição nas águas, tanto peixe morto, tanto esgoto á céu aberto. Não depois de quando nem você mais ali pode nadar, não depois que vejam só: uma mulher que nasceu em lugar com nome de praia não sabe viver, não é alegre, não sabe nadar.