Nunca

  Admito acreditar no exorcismo do passado através da palavra escrita. A vida cria necessidade de busca pessoal e liberdade. Durante os anos a memória se esvai. Nunca pensei que rezaria para esquecer um acontecimento. Hoje tento lidar com o erro de pessoas que deveriam me proteger. 
 Os quinze anos de uma garota deveriam ser mágicos. Na medida do possível as coisas deveriam ser bonitas. Ela, vestida como saída de um de seus sonhos. Seus amigos ao seu lado desejando o melhor. As luzes acesas e voltadas para ela. É uma noite que ninguém quer que termine. Talvez por isso seja eterna em seus pensamentos. Muitas vezes desejo que minha imaginação não seja tão fértil. Anseio pelo afastamento precoce do contato com os livros. Tento colocar a culpa neles pela sensação de ilusão diante da história daquele aniversário. Eu estava em um lugar aconchegante. A decoração foi toda pensada com carinho para mim. Tudo seria feliz não fosse a tarde anterior. 
  Em uma rua estreita avisto alguém que faz meu coração parar. É ele, o meu pai. Estava a mais de cem metros de distância mas eu reconheceria ele em qualquer lugar. A minha frente, caminhando cambaleante talvez, ou fosse apenas o sol deformando minha visão. Uma mulher passa ao seu lado e ele a cumprimenta. Ilusão de ótica, ele estava bem para uma conversa. Você já abraçou alguém com todo o carinho e não houve ao menos a menção de um movimento ao seu redor? Qualquer coisa parecida não chega perto quando se trata daquele homem. Doeu, mas eu continuei. Até hoje me questiono a razão de tal atitude. Por que eu não simplesmente dei as costas e me retirei? Acredito que minha esperança me dominou. Era a minha oportunidade de transformar meu dia. Olhei em seus olhos cansados atrás de um óculos e pedi para que fosse até minha casa na noite seguinte onde estaria acontecendo a festa. Insisti mesmo sem um murmúrio de compreensão após minha fala. Repliquei de maneira inútil sobre ser bem recebido pela minha família. Não é louco falar da sua família como uma categoria a parte com seu próprio pai?
  Hoje ainda reconto essa cena para mim. Com paciência analiso o que minha cabeça não quer esquecer. Deve haver alguma razão. Um motivo que meu coração aceite. Mas nada é suficiente. Nenhuma justificativa é plausível. Penso que jamais poderei entender o mal causado em mim. Ainda depois do corte adiado do bolo por tantas vezes, madrugada adentro, depois dos convidados irem embora lá eu fiquei. Na calçada esperando aquele que não veio. As esquinas nunca pareceram tão vivas nem os pequenos ruídos tão barulhentos. Estava frio apesar de ser verão. Por vezes elaborei desculpas para a distribuição do bolo antes de sua chegada. Foi em vão, ele nunca apareceu. Nunca mais. Nunca até hoje. Nunca mesmo depois da morte da minha avó. Nunca nem mesmo um bilhete. 
  O mundo é um lugar hostil. Mais hostil ainda o é quando quem deve te proteger vai embora. Fica pior quando não aparece. Não é verdade que eu seja diferente por esse motivo. O que me torna diferente é a semântica. Nesse dia eu apendi o significado do nunca.